quarta-feira, 29 de julho de 2009

Marinheiro

Graciele Felix

Era um barco de multidão eloquente,
num instante como se ausentassem os ruídos, as vozes em tom grave brilhante foram invadidas pelo silêncio e alegria de um reencontro. Tantos séculos e justamente aqui.
Dois pares de pupilas unidas pela primeira vez nesta vida. Éramos dois viajantes isolados, caminhando pela proa alagada desejando ser parte do bravio mar. Os corpos se encaixavam como fôrmas perfeitas, as mão se tocavam como se reconhecessem em suas marcas o passado recente. De repente os olhares não mais se cruzavam. Quem diria a "faceta" da vida, jamais nos unir de verdade.
Não reconhecia mais as pupilas que vislumbravam meu corpo nas manhãs de segunda-feira, adormecendo em meu peito juvenil, ansiando por mais um minuto de meu sorriso. Tantas tormentas se passaram. O mar enfurecido devorou meu olhar de vislumbre quando me deixas-te no barco a deriva, mesmo sabendo que erás tú que me conduzia na imensidão do oceano. O tempo recusou-se a secar minhas feridas.
Já faz tanto tempo que não nos vemos, somente hoje lhe reconheço, é como se o barco voltasse ao cais, e eu admirasse novamente o marinheiro sagaz e imponente, aquietando a multidão para que enfim teu olhar reconhecesse minha alma. Pela primeira vez teu abraço falou comigo, de tanto que sofreu calado ao me ver em outro braço, mas lamento que tão tarde ele tenha reconhecido e me dito o que sempre negaste.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Gosto

Graciele Felix

Gosto do teu gosto doce simples
Do teu cheiro de rosa chá interiorano
Do teu olhar calmo profano
Das tuas mãos nuas
Do sempre de meia-hora
Do espreguiçar do dia
Da melodia
Da bela arte da tarde
Acompanhando o gavião
a espreita ao deslize da próxima presa
Do gêlo dos teus pés na noite fria
Do peito quente no edredom gigante
Da cama de estar
Do teu jeito de menino
Da tua ousadia intimista
Do teu sorriso escrachado
Dos dias de fúria
Dos dias de trégua
Da névoa do quarto andar
Revidando em teus olhos
o maciço de natureza que nos cerca
Da tua pele em brasa atada a minha
Do teu sofrer calado
Do zangar dos pássaros
Porque gosto do acaso,
se é que existe acaso.

Desejo

Graciele Felix

Não ouses imaginar o que penso,
sussurrando ao longe, fazendo com que o vento arrepie impiedoso minha nuca desnuda,
desviando de mim teu olhar sedento, teu tocar infâme, teu murmurar selvagem,
trilhando passagem onde tudo possuo sem deixar marcas.
Não ouses imaginar o que penso ao atirar-me indefesa em teus braços , a implorar teu uivo ao devorar minha carne.
Pois não é com doçura que o atraio a meu desejo, para que enfim me aprisiones a teu sexo doce e cru?
Atiro- me em combate como quem rouba sedento o beijo de um louco que suplica pelos ouvidos do mundo, e assim penetro-lhe sem permissão, como dona do teu êxtase, rainha do teu corpo, senhora do teu gozo.

Alma

Graciele Felix

Encontrei na escrivaninha do quarto um bilhete sombrio, relatando momentos a fio,
inundando de medo minha alma sem dono.
Sonolenta, as palavras invadiram meu pensamento vazio, nele o seguinte recado:
"- Me redimo do mundo eliminando a sombra, bebendo o vinho amargo preparado com o féu da vida. De tudo, rebatoos pensamentos mesquinhos, a loucura dos são. Deixo gravado nos seios mundanos as digitais desta vida que vivi por engano."
Como num sonho profundo a neblina juntou-se as palavras soltas da solidão, acordei como se saisse do ventre de minha mãe,
na parede branca do quarto isolado duas datas bem marcadas :
1822 - 1852 .
Sem lamentar volto ao que me formaste, me dou conta de minhas vidas, do quanto caminhei até chegar aqui.

Alma 1952 - 1982

Estrada

Graciele Felix

Não foi por engano.
Não me perdi no caminho.
Estou em busca de respostas.
Achei tão linda a sua porta que me deitei aqui.
Vi sua família ceiar tão unida, tão convencida, tão feliz,
lembrei do meu tempo de menino, mesa farta, pão e vinho.
Dos aplausos de minha mãe, de meu piano de cauda negra e das canções de ninar que saiam dos grandes dedos de meu pai.
Não queiras saber deles, me sinto tão cruel. Com tanta estrada na vida escolhi justo a que não devia.
Não tenhas medo deste velho homem, jamais falarei loucuras sem sentido, tudo faz sentido para mim. Estou tentando chegar ao fim.
Já vou indo, estou em busca de resposta, achei tão linda a sua porta que adormeci aqui.

Maria

Graciele Felix

Maria,
Porque estás com o coração na mão?
Acaso não te apavoras ver o passar da hora e nada mudar?
Não me digas a verdade, no fundo sei que é tarde,
mas admitir é tão cruel.
Não sabes que a mentira me alegra e
me revive a alma que de tão sofrida seca?
Vivi tanto deste mundo, que dele sei quase tudo,
mas prefiro me enganar.
Maria,
não esqueça de trancar a porta,
jogar a chave por debaixo dela
para que eu aqui devera lhe espere retornar.